Fagundes Varela

30/01/2011 19:09

 

Fagundes Varela


Bio-bibliografia


Fagundes Varela 
(1841 - 1875) 

Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu na Fazenda Santa Rita, em Rio Claro (RJ). Em 1859 transferiu-se para São Paulo, mas só conseguiu ingressar na Faculdade de Direito em 1862. Influenciado pelos últimos suspiros do “byronismo” estudantil paulistano, dedica-se à boêmia e à bebida, atraído constantemente pela marginalidade. A morte de seu primeiro filho inspira-lhe seu mais conhecido poema, “Cântico do Calvário”. Tenta concluir o curso de Direito em Recife, mas a morte da esposa o faz retornar a São Paulo. Abandona, então, a Faculdade e retorna à fazenda onde nascera, continuando a escrever poesia. Casando-se outra vez, muda-se para Niterói, onde se entrega à bebida e vem a falecer, já em estado de completo desequilíbrio mental.


LUÍS NICOLAU FAGUNDES VARELA 


Nasceu em 1841, no município de Rio Claro, província do Rio de Janeiro. Depois dos estudos básicos na província natal, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo (1862), casando-se no mesmo ano. Daqui por diante a vida foi-lhe um rosário de boêmia, de infelicidades, de intemperança alcoólica, mas de fecundidade poética e de extraordinária inspiração. Um ano passou em Recife (1865) continuando o curso de Direito (3º ano). Em 1866 está de volta a São Paulo, matriculando-se no 4º ano. Os sofrimentos morais levam-no a abandonar o curso e todos os compromissos sociais: só duas realidades o consolam - a poesia e a natureza. Em 1875, com trinta e quatro anos, morre de apoplexia, deixando uma esposa (segundo matrimônio), duas filhinhas e uma obra poética de fulgurações de gênio: 
Noturnas (São Paulo, 1861); O estandarte auriverde (São Paulo, 1863); Vozes da América (São Paulo, 1864); Cantos e fantasias (Paris, 1865); Cantos. meridionais (São Paulo, 1809); Cantos do ermo e da cidade (Paris, 1869); Anchieta ou o Evangelho nas selvas (Rio, 1875); Cantos Religiosos (Rio, 1878) e Diário de Lázaro (Rio, 1880). Publicaram-se as Obras Completas em três volumes (Havre, 1886?), editadas pela Livraria Garnier.

 

 

 

 

 Fagundes Varela


Cântico do Calvário

À Memória de Meu Filho
 
Morto a l l de Dezembro
 
de 1863.



Eras na vida a pomba predileta
 
Que sobre um mar de angústias conduzia
 
O ramo da esperança. — Eras a estrela
 
Que entre as névoas do inverno cintilava
 
Apontando o caminho ao pegureiro.
 
Eras a messe de um dourado estio.
 
Eras o idílio de um amor sublime.
 
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,
 
O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,
 
Pomba, — varou-te a flecha do destino!
 
Astro, — engoliu-te o temporal do norte!
 
Teto, caíste! — Crença, já não vives!
 

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
 
Legado acerbo da ventura extinta,
 
Dúbios archotes que a tremer clareiam
 
A lousa fria de um sonhar que é morto!
 
Correi! Um dia vos verei mais belas
 
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda
 
Fulgurar na coroa de martírios
 
Que me circunda a fronte cismadora!
 
São mortos para mim da noite os fachos,
 
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,
 
E à vossa luz caminharei nos ermos!
 
Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,
 
Brando orvalho do céu! — Sede benditas!
 
Oh! filho de minh'alma! Última rosa
 
Que neste solo ingrato vicejava!
 
Minha esperança amargamente doce!
 
Quando as garças vierem do ocidente
 
Buscando um novo clima onde pousarem,
 
Não mais te embalarei sobre os joelhos,
 
Nem de teus olhos no cerúleo brilho
 
Acharei um consolo a meus tormentos!
 
Não mais invocarei a musa errante
 
Nesses retiros onde cada folha
 
Era um polido espelho de esmeralda
 
Que refletia os fugitivos quadros
 
Dos suspirados tempos que se foram!
 
Não mais perdido em vaporosas cismas
 
Escutarei ao pôr do sol, nas serras,
 
Vibrar a trompa sonorosa e leda
 
Do caçador que aos lares se recolhe!
 

Não mais! A areia tem corrido, e o livro
 
De minha infanda história está completo!
 
Pouco tenho de anciar! Um passo ainda
 
E o fruto de meus dias, negro, podre,
 
Do galho eivado rolará por terra!
 
Ainda um treno, e o vendaval sem freio
 
Ao soprar quebrará a última fibra
 
Da lira infausta que nas mãos sustento!
 
Tornei-me o eco das tristezas todas
 
Que entre os homens achei! O lago escuro
 
Onde ao clarão dos fogos da tormenta
 
Miram-se as larvas fúnebres do estrago!
 
Por toda a parte em que arrastei meu manto
 
Deixei um traço fundo de agonias! ...
 

Oh! quantas horas não gastei, sentado
 
Sobre as costas bravias do Oceano,
 
Esperando que a vida se esvaísse
 
Como um floco de espuma, ou como o friso
 
Que deixa n'água o lenho do barqueiro!
 
Quantos momentos de loucura e febre
 
Não consumi perdido nos desertos,
 
Escutando os rumores das florestas,
 
E procurando nessas vozes torvas
 
Distinguir o meu cântico de morte!
 
Quantas noites de angústias e delírios
 
Não velei, entre as sombras espreitando
 
A passagem veloz do gênio horrendo
 
Que o mundo abate ao galopar infrene
 
Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!
 
A vida parecia ardente e douda
 
Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,
 
Tão puro ainda, ainda n'alvorada,
 
Ave banhada em mares de esperança,
 

Rosa em botão, crisálida entre luzes,
 
Foste o escolhido na tremenda ceifa!
 
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos
 
Senti bater teu hálito suave;
 
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo
 
Pulsar-te o coração divino ainda;
 
Quando fitei teus olhos sossegados,
 
Abismos de inocência e de candura,
 
E baixo e a medo murmurei: meu filho!
 
Meu filho! frase imensa, inexplicável,
 
Grata como o chorar de Madalena
 
Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras
 
Senti rugir o vento incendiado
 
Desse amor infinito que eterniza
 
O consórcio dos orbes que se enredam
 
Dos mistérios do ser na teia augusta!
 
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!
 
Que se expande em torrentes inefáveis
 
Do seio imaculado de Maria!
 
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!
 
E de meu erro a punição cruenta
 
Na mesma glória que elevou-me aos astros,
 
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!
 

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,
 
A voz mentida de rafeiros bardos,
 
Torpe alegria que circunda os berços
 
Quando a opulência doura-lhes as bordas,
 
Não te saudaram ao sorrir primeiro,
 
Clícía mimosa rebentada à sombra!
 
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,
 
Tiveste mais que os príncipes da terra!
 
Templos, altares de afeição sem termos!
 
Mundos de sentimento e de magia!
 
Cantos ditados pelo próprio Deus!
 
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,
 
E o gênio esmagam dos soberbos tronos,
 
Trocariam a púrpura romana
 
Por um verso, uma nota, um som apenas
 
Dos fecundos poemas que inspiraste!
 

Que belos sonhos! Que ilusões benditas!
 
Do cantor infeliz lançaste à vida,
 
Arco-íris de amor! Luz da aliança,
 
Calma e fulgente em meio da tormenta!
 
Do exílio escuro a cítara chorosa
 
Surgiu de novo e às virações errantes
 
Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo
 
Ao pranto sucedeu. As férreas horas
 
Em desejos alados se mudaram.
 
Noites fugiam, madrugadas vinham,
 
Mas sepultado num prazer profundo
 
Não te deixava o berço descuidoso,
 
Nem de teu rosto meu olhar tirava,
 
Nem de outros sonhos que dos teus vivia!
 

Como eras lindo! Nas rosadas faces
 
Tinhas ainda o tépido vestígio
 
Dos beijos divinais, — nos olhos langues
 
Brilhava o brando raio que acendera
 
A bênção do Senhor quando o deixaste!
 
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,
 
Filhos do éter e da luz, voavam,
 
Riam-se alegres, das caçoilas níveas
 
Celeste aroma te vertendo ao corpo!
 
E eu dizia comigo: — teu destino
 
Será mais belo que o cantar das fadas
 
Que dançam no arrebol, — mais triunfante
 
Que o sol nascente derribando ao nada
 
Muralhas de negrume! ... Irás tão alto
 
Como o pássaro-rei do Novo Mundo!
 

Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,
 
E tantas glórias, tão risonhos planos
 
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro
 
Abrasou com seu facho ensangüentado
 
Meus soberbos castelos. A desgraça
 
Sentou-se em meu solar, e a soberana
 
Dos sinistros impérios de além-mundo
 
Com seu dedo real selou-te a fronte!
 
Inda te vejo pelas noites minhas,
 
Em meus dias sem luz vejo-te ainda,
 
Creio-te vivo, e morto te pranteio! ...
 

Ouço o tanger monótono dos sinos,
 
E cada vibração contar parece
 
As ilusões que murcham-se contigo!
 
Escuto em meio de confusas vozes,
 
Cheias de frases pueris, estultas,
 
O linho mortuário que retalham
 
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas
 
Saudades e perpétuas, — sinto o aroma
 
Do incenso das igrejas, — ouço os cantos
 
Dos ministros de Deus que me repetem
 
Que não és mais da terra!... E choro embalde.
 

Mas não! Tu dormes no infinito seio
 
Do Criador dos seres! Tu me falas
 
Na voz dos ventos, no chorar das aves,
 
Talvez das ondas no respiro flébil!
 
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,
 
No vulto solitário de uma estrela,
 
E são teus raios que meu estro aquecem!
 
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!
 
Brilha e fulgura no azulado manto,
 
Mas não te arrojes, lágrima da noite,
 
Nas ondas nebulosas do ocidente!
 
Brilha e fulgura! Quando a morte fria
 
Sobre mim sacudir o pó das asas,
 
Escada de Jacó serão teus raios
 
Por onde asinha subirá minh'alma.

 

 

 

 

Névoas


Nas horas tardias que a noite desmaia 
Que rolam na praia mil vagas azuis, 
E a lua cercada de pálida chama 
Nos mares derrama seu pranto de luz, 

Eu vi entre os flocos de névoas imensas, 
Que em grutas extensas se elevam no ar, 
Um corpo de fada — sereno, dormindo, 
Tranqüila sorrindo num brando sonhar. 

Na forma de neve — puríssima e nua — 
Um raio da lua de manso batia, 
E assim reclinada no túrbido leito 
Seu pálido peito de amores tremia. 

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas, 
Das verdes, cheirosas roseiras do céu, 
Acaso rolaste tão bela dormindo, 
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu? 

O orvalho das noites congela-te a fronte, 
As orlas do monte se escondem nas brumas, 
E queda repousas num mar de neblina, 
Qual pérola fina no leito de espumas! 

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes 
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar? 
E as asas, de prata do gênio das noites 
Em tíbios açoites a trança agitar? 

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo 
De um férvido beijo gozares em vão!... 
Os astros sem alma se cansam de olhar-te, 
Nem podem amar-te, nem dizem paixão! 

E as auras passavam — e as névoas tremiam 
— E os gênios corriam — no espaço a cantar, 
Mas ela dormia tão pura e divina 
Qual pálida ondina nas águas do mar! 

Imagem formosa das nuvens da Ilíria, 
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte, 
Não ouves ao menos do bardo os clamores, 
Envolto em vapores — mais fria que a morte! 

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado, 
Teu seio molhado de orvalho brilhante, 
Eu quero aquecê-los no peito incendido, 
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!... 

Assim eu clamava tristonho e pendido, 
Ouvindo o gemido da onda na praia, 
Na hora em que fogem as névoas sombrias 
– Nas horas tardias que a noite desmaia. 

E as brisas da aurora ligeiras corriam. 
No leito batiam da fada divina... 
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem, 
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!

 

 

Juvenília VII


Ah! quando face a face te contemplo, 
E me queimo na luz de teu olhar, 
E no mar de tua alma afogo a minha, 
E escuto-te falar; 

Quando bebo no teu hálito mais puro 
Que o bafejo inefável das esferas, 
E miro os róseos lábios que aviventam 
Imortais primaveras, 

Tenho medo de ti!... Sim, tenho medo 
Porque pressinto as garras da loucura, 
E me arrefeço aos gelos do ateísmo, 
Soberba criatura! 

Oh! eu te adoro como a noite 
Por alto mar, sem luz, sem claridade, 
Entre as refegas do tufão bravio 
Vingando a imensidade! 

Como adoro as florestas primitivas, 
Que aos céus levantam perenais folhagens, 
Onde se embalam nos coqueiros presas 

Como adoro os desertos e as tormentas, 
O mistério do abismo e a paz dos ermos, 
E a poeira de mundos que prateia 
A abóbada sem termos! ... 

Como tudo o que é vasto, eterno e belo; 
Tudo o que traz de Deus o nome escrito! 
Como a vida sem fim que além me espera 
No seio do infinito.

 

A Flor do Maracujá 


Pelas rosas, pelos lírios, 
Pelas abelhas, sinhá, 
Pelas notas mais chorosas 
Do canto do Sabiá, 
Pelo cálice de angústias 
Da flor do maracujá ! 
Pelo jasmim, pelo goivo, 
Pelo agreste manacá, 
Pelas gotas de sereno 
Nas folhas do gravatá, 
Pela coroa de espinhos 
Da flor do maracujá. 

Pelas tranças da mãe-d'água 
Que junto da fonte está, 
Pelos colibris que brincam 
Nas alvas plumas do ubá, 
Pelos cravos desenhados 
Na flor do maracujá. 

Pelas azuis borboletas 
Que descem do Panamá, 
Pelos tesouros ocultos 
Nas minas do Sincorá, 
Pelas chagas roxeadas 
Da flor do maracujá ! 

Pelo mar, pelo deserto, 
Pelas montanhas, sinhá ! 
Pelas florestas imensas 
Que falam de Jeová ! 
Pela lança ensangüentado 
Da flor do maracujá ! 

Por tudo que o céu revela ! 
Por tudo que a terra dá 
Eu te juro que minh'alma 
De tua alma escrava está !!.. 
Guarda contigo este emblema 
Da flor do maracujá ! 

Não se enojem teus ouvidos 
De tantas rimas em - a - 
Mas ouve meus juramentos, 
Meus cantos ouve, sinhá! 
Te peço pelos mistérios 
Da flor do maracujá!